quinta-feira, maio 15, 2008

Como salvar um dia ruim em uma noite

crédito: Carolina Andrade
Eu costumo pensar que, se um dia começa ruim, é quase certeza que ele também irá terminar de forma ruim. Eu estava certa de que a sexta-feira passada seria um dia assim. Acordei atrasada, não tomei café da manhã direito, no meio do caminho para o ponto de ônibus, vi meu ônibus passando. Chegando lá, vi meu ônibus saindo e tive que ficar 40 minutos esperando o próximo. Cheguei, é claro, atrasada no trabalho, para um dia cheio. Almocei correndo, peguei fila no banco: as perspectivas para a noite não eram das melhores.

Mesmo assim, saí do trabalho com certa esperança em direção ao Via Funchal. Como não poderia deixar de ser, peguei um trânsito absurdo no caminho, o que me fez desistir de esperar o outro ônibus e me obrigou a ir andando da rua Cardeal Arco Verde até o número 65 da Rua Funchal. Uma úmida, escura e desesperada caminhada.

Embora seja estranho falar em "sorte" em um dia como esses, acreditei ser uma sorte o fato de eu ter chocolates da bolsa. Comecei a comer, loucamente, os bombons que eu carregava comigo. Isso me ajudou a andar mais rapidamente e a me importar menos com os pingos de chuva que começavam a cair. Os canteiros com tulipas amarelas e roxas com que eu me deparei no meio do caminho também tiveram um papel importante para o começo da minha recuperação frente ao dia ruim que vinha até então se desenrolando para mim.

Cheguei ao Via Funchal completamente descabelada, uns cinco minutos antes de Martha Wainwright entrar no palco, acompanhada de seu violão, para abrir o show de seu irmão, o Rufus Wainwright. Vendo aquela criatura mexer as pernas descontroladamente enquanto soltava pela boca uma voz belíssima, tive certeza de que a minha teoria sobre dias ruins não estava livre das exceções.

Esse pensamento se confirmou quando Rufus entrou no palco, naquela noite ocupado apenas por um piano, um microfone e um contrabaixo. Nos primeiros versos de "Grey Gardens", percebi que o que iria acontecer ali seria algo especial. Se o show com pessoas sentadas e caladas não funcionou com o Coldplay, com o Rufus, em sua performance solo, aconteceu perfeitamente. A voz dele tomou conta do lugar e calou a platéia, que, como eu, assistia ao show em um completo estado de choque, interrompido apenas pelas palmas, pelos gritos e pelas... gargalhadas. Sim, o mesmo cara que canta coisas como "I drink from the bottle, weeping why won't you last?", em "Foolish Love", também faz gargalhar.

E, se eu sou completamente vulnerável a frases como essas, também não escapo às gargalhadas. Não conseguia parar de rir, por exemplo, quando Rufus, ao apresentar a canção "Sanssouci", comentou que, no Rio de Janeiro, havia comido em um restaurante chamado San Suchi ou quando ele parou no meio dessa mesma canção, porque tinha errado, e disse algo como "Eu adoro esses telões, mas teve uma vez na Austrália em que fiquei o show todo olhando para eles. Vou tentar não fazer isso novamente".

Acho que ele sabe que precisa fazer nos rir parar nos tirar do estado de transe em que ele nos coloca ao abrir a boca próximo a um microfone e soltar musicalmente as melancólicas e machucadas palavras que compõem suas canções. Em algumas delas, como em "Not ready to love" e "In my arms", eu fiquei de tal forma presa à música que só percebi que havia prendido a respiração quando estava sentindo falta de ar. As risadas funcionam como um respiro, como se, ao fazer suas graças, ele quisesse dizer "Respirem agora, porque, daqui a pouco, vou novamente fazê-los ficar sem ar". E, de fato, acho que era mais ou menos isso acontecia.

Nos momentos desses respiros, Rufus nos tira de algo quase sublime e se mostra, paradoxalmente, como uma pessoa completamente descomprometida no palco, pronta para os improvisos, para os erros e para a espontaneidade. Ou seja, tira os espectadores das nuvens e os traz para o chão, com perdão pela imagem carregada de pieguice. E, no chão, nós nos encantamos com um artista que faz comentários no meio das canções, imita com a voz o que seria um solo de guitarra e nos pede que finjamos ser o Marlon Brando sem camisa.

Tudo funciona como se nós estivéssemos ido à casa de Rufus e não ele ao nosso país, principalmente nas vezes em que sua irmã, sua mãe e seu cunhado também sobem ao palco. E, assim, eu descobri que, lá na casa de Rufus, indo das nuvens ao chão, os dias ruins são facilmente esquecidos.

 

Comments:
"Acho que ele sabe que precisa fazer nos rir parar nos tirar do estado de transe em que ele nos coloca ao abrir a boca próximo a um microfone e soltar musicalmente as melancólicas e machucadas palavras que compõem suas canções."
lindo texto, marcela! eu não teria dito melhor.

e sem grilos quanto à foto ;)

 
Olha, vc teve até alucinação com tulipas.
 
Postar um comentário



<< Home